O CASO DOS EXPLORADORES DE CAVERNAS – SUPREMA CORTE DE NEWGARTH- ANO DE 4300- parte III

14/02/2018

Tatting, J.: No cumprimento de meus deveres como juiz deste Tribunal, tenho sido normalmente capaz de dissociar os aspectos emocionais e intelectuais de minhas reações e decidir o caso sub judice inteiramente baseado no último.

Examinando este trágico caso, sinto, todavia, que me faltam os recursos habituais. Sob o aspecto emocional sinto-me dividido entre a simpatia por estes homens e um sentimento de aversão e revolta com relação ao monstruoso ato que cometeram. Alimentei a esperança de que seria capaz de pôr estas emoções contraditórias de lado como irrelevantes e, assim, decidir o caso com base em uma demonstração convincente e lógica do resultado reclamado por nossa lei. Infelizmente, não alcancei esta liberação. Ao analisar o voto que terminou de enunciar meu colega Foster, sinto que está minado por contradições e falácias.

Comecemos pela sua primeira proposição: estes homens não estavam sujeitos à nossa lei porque não se encontravam em um “estado de sociedade civil”, mas em um “estado de natureza”. Não me parece claro porque isto seja assim, se em virtude da espessura da rocha que os aprisionou ou porque estavam famintos ou porque tinham estabelecido uma “nova constituição”, segundo a qual as regras usuais de direito deviam ser suplantadas por um lanço de dados.

E outras dificuldades fazem-se sentir. Se estes homens passaram da jurisdição da nossa lei para aquela da “lei da natureza”, em que momento isto ocorreu? Foi quando a entrada da caverna se fechou? Quando a ameaça de morte por inanição atingiu um grau indefinido de intensidade? Ou quando o contrato para o lanço de dados foi celebrado? Estas incertezas que emergem da doutrina proposta pelo meu colega são capazes de causar reais dificuldades. Suponha-se, por exemplo, que um destes homens tenha feito seu vigésimo primeiro aniversário enquanto estava aprisionado no interior da montanha. Em que data nós teríamos que considerar que ele completou a maioridade — quando atingiu os vinte e um anos, no momento em que se achava, por hipótese, subtraído dos efeitos de nossas leis, ou quando foi libertado da caverna e voltou a submeter-se ao império do que o meu colega denomina nosso “direito positivo”. Estas dificuldades, no entanto, servem para revelar a natureza fantasiosa da doutrina que é capaz de originá-las. Mas não é necessário explorar mais estas sutilezas para demonstrar o absurdo da posição do meu colega.

O senhor Ministro Foster e eu somos os juízes designados do Tribunal de Newgarth, com o poder e dever de aplicar as leis deste país. Com que autoridade nós nos transformamos em um tribunal da natureza? Se esses homens na verdade se encontravam sob a lei natural, de onde vem nossa autoridade para estabelecer e aplicar aquela lei? Certamente nós não estamos em um estado de natureza.

Mas, examinemos o conteúdo deste código de leis naturais que meu colega propõe que adotemos e o apliquemos a este caso. Que código desordenado e odioso é este! É um código em que as normas reguladoras dos contratos assumem maior importância do que aquela referente ao homicídio. É um código segundo o qual um homem pode estabelecer um contrato válido, conferindo poderes a seus semelhantes de comer seu próprio corpo. Além disso, segundo os seus dispositivos, uma vez feito, tal contrato é irrevogável, e, se uma das partes tenta rescindi-lo, as outras podem tomar a lei em suas próprias mãos e executá-lo pela força — pois embora meu colega não refira, por conveniência, o efeito da rescisão unilateral do contrato feita por Whetmore, esta é uma inferência necessária de sua argumentação.

Os princípios expostos por meu colega contêm outras implicações que não podem ser toleradas. Meu colega argumenta que quando os acusados lançaram-se sobre Whetmore e o mataram (nós não sabemos como, talvez golpeando-o com pedras), eles estavam somente exercitando o direito que lhes fora conferido pelo contrato. Suponha-se, entretanto, que Whetmore tivesse escondido sob suas roupas um revólver e que, quando visse os réus lançarem-se sobre si para trucidá-lo, os tivesse matado a tiros a fim de salvar sua própria vida. O raciocínio de meu colega aplicado a estes fatos transformaria Whetmore em um homicida, de vez que a excludente da legítima defesa teria que ser-lhe denegada. Se seus atacantes estavam atuando legalmente procurando ocasionar sua morte, então, evidentemente, ele não mais poderia excusar-se argumentando que estava defendendo sua própria vida, da mesma forma que não poderia fazê-lo um prisioneiro condenado que abate o verdugo enquanto tenta legalmente colocar o nó em seu pescoço.

Todas estas considerações tornam impossível para mim aceitar a primeira parte dos argumentos de meu colega. Não posso nem aceitar sua noção de que estes homens encontravam-se regidos por um código de leis naturais, que este Tribunal estaria obrigado a aplicar-lhes, nem posso admitir as regras odiosas e desnaturadas que ele pretende que este código contenha.

Chego agora à segunda parte do voto do meu colega em que ele busca demonstrar que os réus não violaram os dispositivos legais do N. C. S. A. (n. s.) § 12-A. Neste ponto o raciocínio, em vez de ser claro, parece-me nebuloso e ambíguo, embora meu colega não pareça consciente das dificuldades inerentes às suas demonstrações.

A essência da argumentação de meu colega pode ser enunciada nos seguintes termos: nenhuma lei, qualquer que seja seu texto, deveria ser aplicada de modo a contradizer seu propósito. Um dos objetivos de qualquer norma penal é a prevenção. A aplicação da lei, qualificando como crime matar a outrem, neste caso peculiar contradiria seu propósito, pois é impossível crer que os dispositivos do código penal pudessem atuar de maneira preventiva relativamente a homens colocados em face da alternativa de viver ou morrer. O raciocínio segundo o qual esta exceção é encontrada na lei é, segundo observa o meu colega, o mesmo que conduz à admissibilidade da excludente da legítima defesa. À primeira vista, esta demonstração parece bastante convincente.

A interpretação feita por meu colega do fundamento lógico da excludente da legítima defesa encontra-se, de fato, em conformidade com a decisão deste Tribunal — Commonwealth x Parry — um precedente que encontrei estudando este caso. Embora o caso de Commonwealth x Parry pareça ter sido geralmente omitido nos textos e decisões subsequentes, encontra-se, sem dúvida alguma, de acordo com a interpretação que meu colega deu à excludente da legítima defesa. Entretanto, seja-me agora permitido resumir rapidamente as perplexidades que me ocorrem quando examino de modo mais atento o raciocínio de meu colega.

É verdade que uma lei deve ser aplicada segundo seu propósito e que um dos propósitos reconhecidos da legislação penal é a prevenção. A dificuldade é que outros objetivos são também imputados à lei penal. Afirma-se que um de seus propósitos é assegurar uma descarga ordenada à instintiva necessidade de retribuição: Commonwealth x Scape.

Também se afirma que o seu escopo é a reabilitação do delinquente: Commonwealth x Makeover. E outras teorias têm sido propostas. Supondo-se que nós devamos interpretar uma lei à luz de seu propósito, o que deveremos fazer quando tiver vários propósitos ou quando estes forem questionados? Uma dificuldade similar é apresentada pela circunstância de que, embora haja fundamento jurisprudencial para a interpretação dada por meu colega à excludente da legítima defesa, também há outro critério jurisprudencial conferindo a esta excludente um fundamento lógico diverso. Na verdade, até ter tomado conhecimento da decisão no caso de Commonwealth x Parry eu nunca tinha ouvido a explicação dada por meu colega.

A doutrina ensinada em nossas escolas, memorizada por gerações de estudantes de direito, diz o seguinte: a lei referente ao homicídio requer um ato “intencional”. O homem que atua para repelir uma ameaça agressiva à sua própria vida não age “intencionalmente”, mas em resposta a um impulso profundamente enraizado na natureza humana. Suponho que dificilmente exista um jurista neste país que não esteja familiarizado com esta linha de raciocínio, especialmente porque este é um dos pontos preferidos nos exames visando ao exercício da advocacia.

Mas a explicação familiar para a excludente da legítima defesa que terminei de expor obviamente não pode ser aplicada por analogia aos fatos deste caso. A estes, algum auxílio inesperado talvez pudesse ter chegado. Dou-me conta de que esta observação apenas reduz a distinção a uma questão de grau, sem que a destrua completamente. É certamente verdade que o elemento de prevenção seria menor neste caso do que aquele que normalmente decorre da aplicação da lei penal.

Ainda há outra dificuldade na proposta de meu colega Foster de estabelecer uma exceção na lei em favor deste caso, embora novamente nenhuma dúvida transpareça em seu voto. Qual será o alcance da exceção? No caso, os homens tiraram a sorte e a própria vítima no início concordou com o que foi contratado. O que decidiríamos se Whetmore tivesse recusado desde o começo a participar do plano? Permitir-se-ia que uma maioria decidisse contra a sua vontade? Ou suponha-se que nenhum plano fosse adotado e que os outros simplesmente conspirassem para causar a morte de Whetmore, e à guisa de justificativa dissessem que ele estava em condição física mais débil. Ou, ainda, que um plano de seleção, baseado numa justificação diferente daquela aqui adotada, fosse seguido, como, por exemplo, se os outros fossem ateus e insistissem que Whetmore deveria morrer porque era o único que acreditava na vida além da morte. Estes exemplos poderiam ser multiplicados, mas já se sugeriu o suficiente para revelar as inúmeras dificuldades ocultas contidas no raciocínio de meu colega.

É claro que, refletindo, dou-me conta de que estou lidando com um problema que nunca mais ocorrerá, pois é improvável que outro grupo de homens seja levado a cometer novamente a terrível ação que ora julgamos. De qualquer forma, continuando a reflexão, mesmo se nós estivermos certos de que um caso similar não ocorrerá novamente, não é claro que os exemplos que dei demonstram a falta de qualquer princípio coerente e racional na decisão que meu colega propõe?

Não se deve aferir a correção de um princípio pelas conclusões que ele acarreta, sem que se faça referência a eventuais problemas decorrentes de um litígio futuro? Entretanto, se assim é, porque nós juízes deste Tribunal, discutimos tão amiúde se é provável que tenhamos que aplicar no futuro um princípio que a solução do caso que ora julgamos reclama? É esta uma situação em que uma linha de raciocínio, originariamente inadequada, chegou a sancionar-se por via de um precedente, de modo que daí por diante estejamos obrigados a aplicá-la?

Quanto mais examino este caso e penso sobre ele, mais profundamente envolvido emocionalmente me sinto. Minha mente fica enredada nas malhas das redes que eu próprio arremesso para salvar-me. Creio que quase toda consideração que interessa à solução do presente caso é contrabalançada por outra oposta, conduzindo em uma direção também oposta.

Meu colega Foster não me propiciou, nem eu pude descobrir por mim próprio, nenhuma fórmula capaz de resolver as dúvidas que por todos os lados me acossam. Dei a este caso a maior atenção de que sou capaz. Tenho dormido muito pouco desde que nos foi apresentado à decisão. Quando me sinto inclinado a aceitar o ponto de vista de meu colega Foster, detém-me a impressão de que seus argumentos são intelectualmente infundados e completamente abstratos. De outro lado, quando me inclino no sentido de manter a condenação, choca-me o absurdo de condenar estes homens à morte quando a salvação de suas vidas custou as de dez heroicos operários. Lamento que ao Representante do Ministério Público tenha parecido adequado acusá-los de homicídio. Se tivéssemos um dispositivo legal capitulando como crime o fato de comer carne humana, esta teria sido uma acusação mais apropriada.

Se nenhuma outra acusação adequada aos fatos deste caso podia ser formulada contra os acusados, teria sido preferível, penso, não tê-los pronunciado. Infelizmente, entretanto, estes homens foram processados e julgados e, em decorrência disto, nós nos vemos envolvidos por este infeliz litígio. Uma vez que me revelei completamente incapaz de afastar as dúvidas que me assediam, lamento anunciar algo que creio não tenha precedentes na história deste Tribunal. Recuso-me a participar da decisão deste caso. (…)

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