EM DEFESA DO ROMANCE- Parte II

Mario Vargas Llosa

Artigo publicado na revista PIAUÍ, edição 37, outubro de 2009

Esse conhecimento totalizador e imediato do ser humano, hoje, se encontra apenas no romance. Nem mesmo os outros ramos das disciplinas humanistas – como a filosofia, a psicologia, a história ou as artes – puderam preservar essa visão integradora e um discurso acessível porque, por trás da pressão irresistível da cancerosa divisão e fragmentação do conhecimento, acabaram por sucumbir também às imposições da especialização, por isolar-se em territórios cada vez mais segmentados e técnicos, cujas ideias e linguagens estão fora do alcance da mulher e do homem comuns. Não é nem pode ser o caso da literatura, embora alguns críticos e teóricos se empenhem em transformá-la em uma ciência, porque a ficção não existe para investigar uma área determinada da experiência, mas para enriquecer de maneira imaginária a vida, a de todos, a vida que não pode ser desmembrada, desarticulada, reduzida a esquemas ou fórmulas, sem que desapareça.

Por isso, Marcel Proust disse: “A verdadeira vida, a vida por fim esclarecida e descoberta, a única vida, pois, plenamente vivida, é a literatura.” Não exagerava, guiado pelo amor a essa vocação que praticou com talento superlativo: simplesmente queria dizer que, graças à literatura, a vida se compreende e se vive melhor, e entendê-la e vivê-la melhor significa vivê-la e partilhá-la com os outros.

Borges se irritava quando lhe perguntavam: “Para que serve a literatura?” Parecia-lhe uma pergunta idiota, e ele respondia: “A ninguém ocorreria perguntar-se sobre qual é a utilidade do canto de um canário ou das cores do céu no crepúsculo!”; com efeito, se essas coisas belas estão ali e graças a elas a vida, ainda que por um instante, é menos feia e menos triste, não é mesquinho procurar justificativas práticas?

À diferença do gorjeio dos pássaros ou do espetáculo do sol fundindo-se no horizonte, um poema, um romance não está pura e simplesmente ali, fabricado por acaso ou pela natureza. É uma criação humana, e é lícito perguntar como e por que nasceram, e o que deram à humanidade para que a literatura, cujas origens remotas se confundem com as da escrita, tenha durado tanto tempo. Nasceram como fantasmas incertos, no íntimo de uma consciência, projetados a ela pelas forças conjugadas do inconsciente, de uma sensibilidade e de algumas emoções, a que, numa luta às vezes implacável com as palavras, o poeta, o narrador, deu forma, corpo, movimento, ritmo, harmonia, vida. Uma vida artificial, feita com a linguagem e a fantasia, que coexiste com a outra, a real, desde tempos imemoriais, e à qual acorrem homens e mulheres porque a vida que têm não lhes basta, não é capaz de oferecer tudo aquilo que gostariam de ter. O romance não começa a existir quando nasce, por obra de um indivíduo; só existe realmente quando é adotado pelos outros e passa a fazer parte da vida social, quando se torna, graças à leitura, experiência partilhada.

Um dos primeiros efeitos benéficos se verifica no plano da linguagem. Uma comunidade sem literatura escrita se exprime com menos precisão, riqueza de nuances e clareza do que outra cujo instrumento principal de comunicação, a palavra, foi cultivado e aperfeiçoado graças aos textos literários. Uma humanidade sem romances, não contaminada pela literatura, se pareceria com uma comunidade de tartamudos e afásicos, atormentada por problemas terríveis de comunicação causados por uma linguagem ordinária e rudimentar.

Isso vale também para os indivíduos, obviamente. Uma pessoa que não lê, ou que lê pouco, ou que lê apenas porcarias, pode falar muito, mas dirá sempre poucas coisas, porque para se exprimir dispõe de um repertório reduzido e inadequado de vocábulos. Não se trata apenas de um limite verbal; é, a um só tempo, um limite intelectual e de horizonte imaginário, uma indigência de pensamentos e de conhecimentos, porque as ideias, os conceitos, mediante os quais nos apropriamos da realidade e dos segredos da nossa condição, não existem dissociados das palavras, por meio das quais as reconhece e define a consciência. Aprende-se a falar com precisão, com profundidade, com rigor e agudeza, graças à boa literatura, e apenas graças a ela.

Nenhuma outra disciplina, nenhum outro ramo das artes, pode substituir a literatura na formação da linguagem com que as pessoas se comunicam. Os conhecimentos que nos transmitem os manuais científicos e os tratados técnicos são fundamentais; mas eles não nos ensinam a dominar as palavras nem a exprimi-las com propriedade: pelo contrário, amiúde são mal escritos e revelam certa confusão linguística porque os autores, às vezes eminências indiscutíveis em sua profissão, são literariamente incultos e não sabem se servir da linguagem para comunicar os tesouros conceituais de que são detentores. Falar bem, dispor de uma linguagem rica e variada, encontrar a expressão adequada para cada ideia ou emoção que se queira comunicar, significa estar mais preparado para pensar, ensinar, aprender, dialogar e, também, para fantasiar, sonhar, sentir e emocionar-se.

De uma maneira sub-reptícia, as palavras reverberam em todas as ações da vida, até mesmo nas que parecem muito distantes da linguagem. Isso, na medida em que, graças à literatura, evoluiu até níveis elevados de refinamento e de sutileza nas nuances, elevou as possibilidades da fruição humana, e, com relação ao amor, sublimou os desejos e alçou à categoria de criação artística o ato sexual. Sem a literatura não existiria o erotismo. O amor e o prazer seriam mais pobres, privados de delicadeza e de distinção, da intensidade a que chegam todos aqueles que se educaram e estimularam com a sensibilidade e as fantasias literárias. Não é exagero afirmar que um casal que haja lido Garcilaso, Petrarca, Góngora e Baudelaire ama e usufrui mais do que outro, de analfabetos semi-idiotizados pelas séries de televisão. Em um mundo iletrado, o amor e a fruição não poderiam ser diferenciados daqueles que satisfazem os animais, não iriam além da mera satisfação dos instintos elementares: copular e devorar.

Os meios audiovisuais não estão em condições de substituir a literatura na função de ensinar o ser humano a usar com segurança, e talento, as riquíssimas possibilidades que a língua encerra. Esses meios tendem a relegar as palavras a um segundo plano em relação às imagens, que são a sua linguagem essencial, e a reduzir a língua à sua expressão oral, ao mínimo indispensável, o mais distante possível de sua vertente escrita que, na tela e nos alto-falantes, resulta sempre soporífera (soporífero = que ou o que é enfadonho, cansativo, maçante). Dizer de um filme ou de um programa que ele é “literário” é um modo educado de chamá-lo de chato. […]

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