EM DEFESA DO ROMANCE- Parte final

Mario Vargas Llosa

Artigo publicado na revista PIAUÍ, edição 37, outubro de 2009

A boa literatura, enquanto aplaca momentaneamente a insatisfação humana, incrementa-a e, fazendo que se desenvolva uma sensibilidade inconformista em relação à vida, torna os seres humanos mais aptos para a infelicidade. Viver insatisfeito, em luta contra a existência, significa empenhar-se, como dom Quixote, bater-se contra os moinhos de vento, condenar-se, de certa forma, a viver as batalhas travadas pelo coronel Aureliano Buendía, em Cem Anos de Solidão, sabendo que as perderia todas. Isso é provavelmente verdadeiro; mas também é verdadeiro que, sem a revolta contra a mediocridade e a sordidez da vida, nós, seres humanos, ainda viveríamos em condições primitivas, a história teria acabado, não teria nascido o indivíduo, a ciência e a tecnologia não se teriam desenvolvido, os direitos humanos não teriam sido reconhecidos, a liberdade não existiria, porque tudo isso nasceu de atos de insubmissão contra uma vida percebida como insuficiente e intolerável.

Tentemos traçar uma reconstrução histórica fantástica, imaginando um mundo sem literatura, uma humanidade que não haja lido romances. Nessa civilização ágrafa, com um léxico liliputiano (liliputiano = extremamente pequeno), em que talvez os grunhidos e a gesticulação simiesca prevalecessem sobre as palavras, não existiriam certos adjetivos formados a partir das criações literárias: quixotesco, kafkiano, pantagruélico, rocambolesco, orwelliano, sádico e masoquista, entre muitos outros. Haveria loucos, vítimas de paranoias e delírios de perseguição, e pessoas de apetite descomunal e de excessos desmedidos, e bípedes que gozariam recebendo ou infligindo a dor, com certeza; mas não teríamos aprendido a ver por trás desses comportamentos extremados, em contraste com a pretensa normalidade, aspectos essenciais da condição humana, vale dizer, de nós mesmos, algo que só o talento criador de Cervantes, de Kafka, de Rabelais, de Sade ou de Sacher-Masoch nos revelou.

Quando veio a lume o Dom Quixote, os primeiros leitores riam daquele homem iludido e extravagante, da mesma forma como riam as outras personagens do romance. Agora sabemos que o empenho do Cavaleiro da Triste Figura em ver gigantes em vez de moinhos de vento e em cometer todos os desatinos que comete é a forma mais elevada de generosidade, um modo de protestar contra as misérias deste mundo e de procurar mudá-lo. Os próprios conceitos de ideal e de idealismo, tão impregnados de uma validade moral positiva, não seriam o que são – ou seja, valores claros e respeitáveis – se não tivessem encarnado naquela personagem de romance com a força persuasiva que lhe conferiu o gênio de Cervantes. E o mesmo se poderia dizer desse pequeno dom Quixote pragmático e de saias que foi Emma Bovary – o bovarismo não existiria, está claro –, que por sua vez se bateu com ardor para viver essa vida resplendente de paixões e de luxo que ela conhecera nos romances, e se queimou nesse fogo como a mariposa que se aproxima demais da chama.

Como as de Cervantes e Flaubert, as invenções dos grandes criadores literários, ao mesmo tempo em que nos arrancam de nossa prisão realista, conduzem e guiam pelos mundos da fantasia, abrem-nos os olhos sobre aspectos desconhecidos e secretos da nossa condição, e nos dão os instrumentos para explorar e entender mais os abismos do que é humano. Dizer “borgeano” significa destacar-se da realidade racional costumeira e penetrar numa fantástica, rigorosa e elegante construção mental, quase sempre labiríntica, impregnada de referências e alusões livrescas, cuja singularidade não nos é, todavia, estranha, porque nela reconhecemos desejos recônditos e verdades íntimas do nosso ser que só graças às criações literárias de um Jorge Luis Borges puderam tomar forma. O adjetivo “kafkiano” nos vem à mente de maneira natural, como o flash de uma daquelas velhas máquinas fotográficas de fole, toda vez que nos sentimos ameaçados, como indivíduos inermes, por esses mecanismos opressores e destrutivos que tanta dor, tantos abusos e injustiças causaram no mundo moderno: os regimes autoritários, os partidos verticais, as igrejas intolerantes, as burocracias asfixiantes. Sem os contos e romances daquele atormentado judeu de Praga que escrevia em alemão e que viveu sempre à espreita, não teríamos sido capazes de compreender o sentido de fragilidade e impotência do indivíduo isolado ou das minorias discriminadas e perseguidas, ante as forças onipotentes que podem pulverizá-los.

O adjetivo “orwelliano”, primo em primeiro grau de “kafkiano”, refere-se à angústia opressiva e à sensação de absurdo extremo que geraram as ditaduras totalitárias do século XX, as mais refinadas, cruéis e absolutas da história, em seu controle dos atos, da psique e até dos sonhos dos membros de uma sociedade. Nos seus romances mais célebres, A Revolução dos Bichos e 1984, George Orwell descreveu, com acentos gélidos e de pesadelo, uma humanidade submetida ao controle do Grande Irmão, um senhor absoluto que, por meio de uma combinação eficaz de terror e tecnologia moderna, eliminou a liberdade, a espontaneidade e a igualdade – nesse mundo alguns são “mais iguais do que os outros” – e transformou a sociedade em uma colmeia de seres humanos autômatos, programados como os robôs. Não apenas as condutas obedecem aos desígnios do poder, mas também a língua, o newspeak, foi depurada de toda conotação individualista, de toda invenção ou matiz subjetivo, transformando-se numa enfiada de lugares-comuns e clichês impessoais, o que aumenta a servidão dos indivíduos ao sistema. É verdade que a profecia sinistra de 1984 não se materializou e que, como ocorreu com os totalitarismos fascista e nazista, o comunismo totalitário desapareceu na União Soviética e depois começou a se deteriorar na China e naqueles anacronismos que são ainda Cuba e a Coreia do Norte; mas a palavra “orwelliano” permanece como lembrança de uma das experiências político-sociais mais devastadoras vividas pela civilização, e que os romances e ensaios de George Orwell nos ajudaram a compreender nos seus mecanismos mais recônditos.

Por vezes, a imagem que se delineia no espelho que os romances e os poemas nos oferecem de nós mesmos é a imagem de um monstro. Ocorre quando lemos as horripilantes carnificinas sexuais fantasiadas pelo Divino Marquês, ou as tétricas dilacerações e sacrifícios que povoam os livros malditos de um Sacher-Masoch ou de um Bataille. E, todavia, o pior dessas páginas não são o sangue nem a humilhação, tampouco as torturas abjetas nem a sanha que as tornam febris; é a descoberta de que essa violência e os abusos não nos são estranhos, estão repletos de humanidade, de que esses monstros ávidos de transgressão e excesso estão entocados no mais fundo de nosso ser e que, das sombras onde estão ocultos, aguardam uma ocasião favorável para se manifestar, para impor a lei dos seus desejos, que acabaria com a racionalidade, com a convivência e talvez com a própria existência. Não a ciência, mas a literatura foi a primeira a examinar os abismos do fenômeno humano e a descobrir o apavorante potencial destrutivo e autodestrutivo que também o conforma. Portanto, um mundo sem romances seria parcialmente cego em face desses abismos terríveis onde com frequência jazem as motivações das condutas e comportamentos inusitados, e por isso mesmo tão injusto contra o que é diferente, como aquele que, em um passado não muito remoto, acreditava que canhotos, aleijados e gagos estivessem possuídos pelo demônio. Esse mundo talvez continuasse a praticar, como até há pouco tempo algumas tribos amazônicas, o perfeccionismo atroz de afogar nos rios os recém-nascidos com defeitos físicos.

Incivilizado, bárbaro, órfão de sensibilidade e pobre de palavra, ignorante e grave, alheio à paixão e ao erotismo, o mundo sem romances, esse pesadelo que procuro delinear, teria como traço principal o conformismo, a submissão dos seres humanos ao estabelecido. Seria um mundo animal. Os instintos básicos decidiriam a rotina de uma vida oprimida pela luta pela sobrevivência, pelo medo do desconhecido, pela satisfação das necessidades físicas, em que não haveria espaço para o espírito e a que, à monotonia sufocante da vida, acompanharia o pessimismo, a sensação de que a vida humana sempre será assim, e que nada nem ninguém poderá mudar o estado das coisas.

Quando se imagina um mundo assim, há a tendência a identificá-lo de imediato com o primitivo, com o trapo cobrindo os órgãos genitais, com as pequenas comunidades mágico-religiosas que vivem à margem da modernidade na América Latina, na Oceania e na África. A verdade é que o formidável desenvolvimento dos meios audiovisuais em nossa época – os quais, por um lado, revolucionaram as comunicações tornando todos os homens e mulheres do planeta partícipes da atualidade e, por outro, monopolizaram cada vez mais o tempo que os seres vivos dedicam ao ócio e à diversão em vez de à leitura – permite imaginar, como possível cenário histórico do futuro, uma sociedade moderníssima, repleta de computadores, telas e alto-falantes, e sem livros, ou mais precisamente, onde os livros – a literatura – se tornaram semelhantes à alquimia na era da física: uma curiosidade anacrônica, praticada nas catacumbas da civilização mediática por minorias neuróticas. Esse mundo cibernético, receio muito, apesar de sua prosperidade e poderio, de seus elevados níveis de vida e de suas façanhas científicas, seria profundamente incivilizado, letárgico, privado de espírito, uma humanidade resignada de robôs que abdicaram da liberdade.

É mais do que improvável que essa perspectiva sombria chegue a se concretizar. A história não está escrita, não há um destino preestabelecido que tenha decidido por nós o que seremos. Depende totalmente da nossa visão e da nossa vontade que aquela utopia macabra se realize ou se oculte. Se queremos evitar que com os romances desapareça, ou permaneça apartada no desvão das coisas inúteis, essa fonte que estimula a imaginação e a insatisfação, que nos aguça a sensibilidade e nos ensina a falar com força expressiva e rigor, e nos torna mais livres e nossas vidas mais ricas e intensas, é necessário agir. Há que ler os bons livros e incitar a ler, e ensinar a fazer isso a quantos venham depois de nós – nas famílias e nas aulas, nos meios de comunicação de massa e em todos os setores da vida comum – como uma ocupação imprescindível, pois que é a que imprime a sua marca em todos os demais, e os enriquece.●

Mario Vargas Llosa, romancista, ensaísta e crítico literário peruano, publicou Travessuras da Menina Má, pela Alfaguara.

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