EM DEFESA DO ROMANCE- Parte III

Mario Vargas Llosa

Artigo publicado na revista PIAUÍ, edição 37, outubro de 2009

Isso me leva a pensar, também, embora sobre essa questão eu deva admitir que nutro certas dúvidas, que não só a literatura é indispensável para o conhecimento correto e para o domínio da língua, mas que o destino dos romances está ligado, em um matrimônio indissolúvel, ao do livro, produto industrial que muitos declaram já obsoleto.

Um deles é um senhor importante e a quem a humanidade deve muito no campo das comunicações, isto é, Bill Gates, o fundador da Microsoft. O senhor Gates estava em Madri, há pouco tempo, e visitou a Real Academia Espanhola, com a qual a Microsoft lançou as bases daquilo que, assim se espera, será uma fecunda colaboração. Entre outras coisas, Bill Gates assegurou aos acadêmicos que se ocupará pessoalmente de que a letra “ñ” nunca seja retirada dos computadores, promessa que, é óbvio, arrancou de nós um suspiro de alívio, de nós, 400 milhões de hispanohablantes dos cinco continentes, para os quais a mutilação daquela letra essencial no ciberespaço teria criado problemas babélicos.

Pois bem, imediatamente depois dessa concessão amável à língua espanhola e, assim entendo, sem ter sequer deixado a Real Academia, Bill Gates declarou que espera não morrer sem ter realizado o seu maior projeto. E qual seria ele?

Acabar com o papel, e, pois, com os livros, mercadoria que, a seu entender, já é de um anacronismo contumaz. O senhor Gates explicou que as telas dos computadores estão em condições de substituir com êxito o papel em todas as funções e que, além de isso custar menos, de ocupar menos espaço e de ser mais fácil de transportar, as informações e a literatura por meio da tela terão a vantagem ecológica de pôr fim à devastação dos bosques, cataclismo que, pelo visto, é consequência da indústria de papel. As pessoas continuam a ler, explicou ele, mas nas telas, e, desse modo, haverá mais clorofila no meio ambiente.

Eu não estava presente – tomei conhecimento desses detalhes pela imprensa –, mas, se houvesse estado lá, teria interrompido rumorosamente o senhor Bill Gates para contestar, sem o menor constrangimento, a sua intenção de nos aposentar a mim e a tantos colegas meus, a nós, pobres escritores de livros. Pode o monitor substituir o livro em todos os casos, como afirma o criador da Microsoft? Não estou seguro disso. Digo isso sem negar, de modo algum, a revolução que no campo das comunicações e da informação representou o desenvolvimento das novas técnicas, como a internet, que todo dia me presta uma ajuda inestimável em meu trabalho; mas daí a admitir que a tela eletrônica possa substituir o papel no que concerne às leituras literárias há uma lacuna que não consigo preencher. Simplesmente não sou capaz de aceitar a ideia de que a leitura não funcional nem prática, a que não busca uma informação nem uma comunicação de utilidade imediata, possa conviver na tela de um computador com o sonho e com a fruição da palavra, gerando a mesma sensação de intimidade, a mesma concentração e o mesmo isolamento espiritual do livro.

Talvez seja um preconceito, resultante da falta de prática, da já longa identificação na minha experiência da literatura com os livros de papel, mas, se bem que navegue com muito prazer na internet em busca de notícias do mundo, não me ocorreria servir-me dela para ler os poemas de Góngora, um romance de Onetti ou de Calvino, nem um ensaio de Octavio Paz, porque sei muito bem que o efeito dessa leitura jamais seria o mesmo.

A literatura não diz nada aos seres humanos satisfeitos com seu destino, de todo contentes com o modo como vivem a vida. A literatura é alimento dos espíritos indóceis e propagadora da inconformidade, um refúgio para quem tem muito ou muito pouco na vida, onde é possível não ser infeliz, não se sentir incompleto, não ser frustrado nas próprias aspirações. Cavalgar junto ao esquálido Rocinante e a seu desregrado cavaleiro pelas terras da Mancha, percorrer os mares em busca da baleia branca com o capitão Ahab, tomar o arsênico com Emma Bovary ou transformar-se em inseto com Gregor Samsa é um modo astuto que inventamos para nos mitigar pelas ofensas e imposições desta vida injusta que nos obriga a sermos sempre os mesmos, enquanto gostaríamos de ser muitos, tantos quantos fossem necessários para satisfazer os desejos incandescentes de que somos possuídos.

Só momentaneamente é que o romance aplaca essa insatisfação vital, mas, nesse intervalo milagroso, nessa suspensão temporária da vida em que a ilusão literária nos imerge – que parece nos arrancar da cronologia e da história e nos converter em cidadãos de uma pátria sem tempo, imortal – somos outros. Mais intensos, mais ricos, mais complexos, mais felizes, mais lúcidos do que na rotina forçada da nossa vida real. Quando, fechado o livro, posta de parte a ficção, voltamos àquela e a comparamos com o território resplandecente que mal acabamos de deixar, espera-nos uma grande desilusão. Isto é, esta grande confirmação: que a vida sonhada do romance é melhor – mais bela e variada, mais compreensível e perfeita – do que a que vivemos quando estamos despertos, uma vida tolhida nos limites e na servidão a nossa condição.

Nesse sentido, a boa literatura é sempre – ainda que não proponha isso nem se dê conta disso – sediciosa, insubmissa, em revolta: um desafio ao que existe. A literatura nos permite viver em um mundo cujas leis transgridem as leis inflexíveis em meio às quais transcorre a nossa vida real, emancipados da prisão do espaço e do tempo, na impunidade para o excesso e donos de uma soberania que não conhece limites. Como não nos sentirmos defraudados depois de termos lido Guerra e Paz ou Em Busca do Tempo Perdido, ao nos voltarmos a este mundo de mesquinharias infinitas, de fronteiras e proibições que estão à espreita e que em toda parte, a cada passo, perturbam nossas ilusões? Esta é, talvez, ainda mais do que conservar a continuidade da cultura e enriquecer a linguagem, a melhor contribuição da literatura ao progresso humano: recordar-nos (involuntariamente, na maior parte dos casos) de que o mundo se acha mal-acabado, de que mentem os que sustentam o contrário – por exemplo, os poderes que o governam –, e de que poderia ser melhor, mais próximo dos mundos que a nossa imaginação e a nossa palavra são capazes de inventar.

Entenda-se bem: chamar de sediciosa (sedicioso = que não segue regras; indisciplinado) uma literatura porque as belas obras de ficção desenvolvem nos leitores uma consciência alerta em face das imperfeições do mundo real não significa, como creem as igrejas e os governos que se fiam da censura para atenuar ou anular sua carga subversiva, que os textos literários provoquem diretamente comoções sociais ou acelerem as revoluções. Os efeitos sociopolíticos de um poema, de um drama ou de um romance não podem ser verificados porque não se mostram quase nunca de maneira coletiva, mas individual, e isso significa que variam enormemente de uma pessoa para outra. Por isso é difícil, para não dizer impossível, estabelecer normas precisas. Por outro lado, muitas vezes esses efeitos, quando resultam evidentes no âmbito coletivo, podem ter pouco a ver com a qualidade estética do texto que os produz. Por exemplo, um romance medíocre, A Cabana do Pai Tomás, de Harriet Beecher Stowe, parece ter desempenhado um papel importantíssimo na tomada de consciência social, nos Estados Unidos, dos horrores da escravidão; o fato de que esses efeitos sejam difíceis de identificar não significa que eles não existam, mas que se manifestam, de maneira indireta e múltipla, por meio dos comportamentos e ações dos cidadãos cuja personalidade os romances contribuíram para moldar. […]

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