O PRAZER DA CONSONÂNCIA

Fernando Reinach

Você prefere um tapa ou um beijo? Azul ou amarelo? Mozart ou Rolling Stones? Cada estímulo sensorial recebido do mundo exterior acaba por gerar um sentimento em nossa mente, e esse sentimento pode variar do prazer irrecusável à ojeriza insuportável; do deleite estético à repulsa física.

Muitos desses sentimentos e preferências são codificados em nossa constituição biológica, já nascemos com eles. Não existem recém-nascidos que preferem um tapa a um beijo, nascemos com essa preferência e com os sentimentos associados. No outro extremo, existem as preferências relacionadas ao ambiente em que crescemos e fomos educados. É impossível acreditar que o prazer gerado ao assistir a um time de futebol e a repulsa pelo time adversário já estejam determinados quando nascemos. Seguramente dependem de nossa cultura e educação.

Mas há casos intermediários, em que não se sabe se os sentimentos gerados por um estímulo sensorial são derivados das características biológicas de nossa espécie, da influência cultural ou de uma mistura desses fatores. É nessa categoria que está a preferência pelos sons e sua combinação.

Para nós, um conjunto de notas dissonantes gera uma sensação desagradável, enquanto conjuntos de notas consonantes geram sensações agradáveis. Os gregos já sabiam disso.

Faz milhares de anos que a humanidade discute a razão do desprazer causado pela dissonância. A opinião generalizada é que nosso sistema auditivo, por suas características intrínsecas, distingue esses dois tipos de estímulos e atribui sensações boas somente às combinações ditas consonantes. Por esse motivo, praticamente a totalidade das músicas que ouvimos é composta com notas consoantes, seja rock, funk, música clássica ou samba.

Mas agora um grupo de cientistas investigou se essa preferência pela consonância também existe em populações que nunca tiveram contato com a música ocidental. São os habitantes de Tsimane, na região amazônica da Bolívia. Essa comunidade não tem luz elétrica, não escuta rádio e vive isolada no meio da floresta, em uma região onde somente se chega de barco. Sessenta e quatro pessoas dessa vila foram estudadas. Elas aceitaram ouvir música composta por conjuntos de notas dissonantes ou consonantes, e foi solicitado a elas que reportassem o prazer gerado por esse conjunto de músicas.

O mesmo estudo foi feito com pessoas de São Borja, uma pequena cidade na Bolívia, de La Paz, dos EUA e, finalmente, músicos dos EUA. O que os cientistas descobriram foi que a população de Tsimane, é capaz de distinguir essas duas formas de música, mas não acha uma mais agradável do que a outra. Mas basta chegar a São Borja, distante 50 quilômetros de Tsimane, onde já há rádio e televisão, para que as pessoas começassem a achar a música dissonante desagradável. E isso se repete em La Paz e nos EUA.

A conclusão é que nossa preferência pela consonância é cultural, e não genética. Ouvimos música composta desta maneira desde que nascemos e passamos a só gostar desse tipo de combinação de notas. Já as pessoas de Tsimane, que nunca foram expostas à música ocidental, não acham que uma forma gera mais prazer do que a outra.

Esse resultado sugere que no passado distante a humanidade fez uma opção pela música consonante e a preponderância dessa forma de compor foi transmitida de geração a geração, alimentando essa forma de compor e fortalecendo nosso restrito gosto musical. A preferência pela consonância não é uma característica do nosso sistema nervoso, é produto de nossa cultura. Esse exemplo mostra quão poderosa pode ser a herança cultural na espécie humana. É uma lição de humildade para quem vive pregando a existência de genes para toda e qualquer característica da nossa espécie. ●

Fernando Reinach:  biólogo

Jornal O Estado de S.Paulo, 6 de agosto de 2016

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