NOSSA HONESTIDADE INTRÍNSECA

Fernando Reinach

Trapaça entre animais é regra, não exceção. Pássaros induzem outra espécie a chocar seus ovos, macacos escondem comida dos companheiros. O homem não é diferente. 

Nas sociedades humanas métodos de controle e punição tentam manter os indivíduos “na linha”. A eficácia desses métodos esconde nossa verdadeira vontade de trapacear. Nos últimos anos, os cientistas têm tentado medir o que eles chamam de honestidade intrínseca, aquela observada em condições em que o indivíduo tem certeza absoluta de que não será descoberto. Essa medida permite isolar o efeito da vigilância e da repressão sobre o comportamento das pessoas. É fácil imaginar que dois indivíduos com o mesmo grau de desonestidade intrínseca se comportam de maneira muito diferente em sociedades com diferentes mecanismos de detecção e repressão. 

A novidade é que os cientistas conseguiram demonstrar que a honestidade intrínseca tem um componente que é característico da espécie humana, mas modulado pela cultura. Essa descoberta foi feita medindo a honestidade intrínseca de 2.568 jovens em 23 países. Os países foram escolhidos usando uma combinação de três indicadores: um índice de corrupção, um índice de respeito aos direitos políticos e um índice de evasão de impostos. A combinação foi denominada PVR (prevalência de violação de regras). Quanto maior o PVR, mais o país desrespeita as próprias regras. 

O experimento é simples. O jovem é colocado num cubículo onde tem certeza de que não pode ser observado. Ele recebe um dado e é instruído a jogar o dado duas vezes. Além disso, é instruído a reportar ao investigador somente o resultado obtido na segunda vez.

Ele também é informado que o pagamento depende do número que ele reportar ao investigador. Se reportar 1, ganha 1 dinheiro, se reportar 2, dois dinheiros, e assim por diante, até 5. Se reportar 6, não ganha nada. Nesse jogo é impossível aos cientistas saber se o indivíduo está reportando a verdade (o número que saiu no segundo arremesso do dado) ou está mentindo. Mas analisando o que foi pago ao conjunto de cem jogadores é possível deduzir o comportamento do grupo. Se todos mentirem para maximizar o ganho, na média vão receber 5 dinheiros cada (o valor máximo). Se todos reportarem o número correto, na média o valor pago será de 2,5 por pessoa. A distribuição dos pagamentos entre os jogadores permite determinar a proporção de honestos e desonestos. Se, em vez de reportar o valor do segundo arremesso do dado as pessoas trapacearem levemente e reportarem o maior valor de ambos os arremessos, a distribuição dos valores terá uma forma característica e isso também pode ser determinado.

Resultados obtidos em 23 países demonstram que em nenhum a população é totalmente honesta ou totalmente desonesta. Em todos, a população se comporta como se as pessoas aumentassem um pouco o resultado, melhorando seus ganhos. As pessoas acabam recebendo em média 3,25 dinheiros. Um pouco mais do que receberiam se tivessem se comportado de maneira totalmente honesta (2,5 dinheiros), mas menos do que se tentassem maximizar os ganhos com a mentira deslavada (5 dinheiros).

O mais interessante é que nos países com maior índice de violação de regras (PVR) a desonestidade é maior (3,53 dinheiros) do que nos países com PVR menor (3,17 dinheiros). Além disso, foi possível estimar em cada país a fração das pessoas totalmente honestas. Esse número varia de 90% (Alemanha) a 5% (Tanzânia) – na maioria dos países esse número varia entre 20% e 60%.

Esse estudo demonstra que os seres humanos, quando totalmente livres do risco de serem flagrados violando as regras, tendem a ser desonestos. Mesmo nas sociedades mais vigilantes e punidoras. Além disso, em ambientes onde a violação das regras é mais comum a honestidade intrínseca é menor. Esse dado demonstra que a desonestidade intrínseca, que parece ser inerente ao ser humano, é modulada pelo ambiente. Que a desonestidade em geral depende do ambiente nós sabemos bem, mas que a parte intrínseca desse comportamento também depende do ambiente é uma novidade. É pena que esse estudo não foi feito em sociedades ditas primitivas, compostas por pequenos grupos de coletores e caçadores. Não fica claro por que o Brasil não foi incluído no estudo. ●

Fernando Reinach:  biólogo

Jornal O Estado de S.Paulo, 26 de março de 2016

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